quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

"Quis custodiet ipsos custodes?" Parte II

Concluímos o ultimo artigo com o argumento devastador de Platão contra a Democracia. Mas não existirá pontos menos consistentes no argumento do filósofo, a partir dos quais possamos ripostar?

O sistema dos guardiões é, supostamente, uma ditadura. Uma ditadura benevolente, mas ainda assim, de caractér ditatorial. Apesar de os Guardiões que Sócrates propõe não serem os tiranos sedentos de poder que vimos surgir em vários pontos da nossa história, e colhem os frutos de uma educação rica e rigorosa, não serão, acima de tudo, humanos?



Um dos problemas que mais afecta os indivíduos que se ocupam da governação é a susceptibilidade à corrupção. É uma das pragas políticas que sempre afectou as sociedades humanas: um ou mais indivíduos, em posições privilegiadas, que exploram a sua posição de modo a retirar benefícios pessoais, e que acabam por alterar as motivações do individuo, por mais intrépidas que estas sejam no momento em que chega ao gabinete.

Platão não deixou que tal possibilidade escapasse ao seu escrutínio. Aos Guardiões, não lhes será permitido que possuam dinheiro ou casas, ou qualquer tipo de propriedade privada. Viverão comunalmente em instalações simples e espartanas, na verdadeira acepção da palavra. A sua remuneração será a comida que consomem. Desta forma, seguindo da sua educação e condições que se encontram impostas, o Rei-Filósofo nunca poderá incorrer em situações de corrupção, pois todos os focos donde tal comportamento possa nascer encontram-se fora de alcance.

Poderemos então colocar uma questão pertinente: Se a vida do Rei-Filósofo é tão despojada de riquezas, ou pior, de qualquer possessão material, o que nos leva a pensar que quereria governar? Podemos retirar de secções anteriores deste artigo uma justificação, que se baseia no facto de o Guardião ser um filósofo, um homem (na verdade, nunca existiu qualquer menção a mulheres, o que nos leva a excluir Rainhas-Filósofas!) dedicado ao conhecimento e à reflexão, que não ambiciona qualquer bem material.

Mas, se assim é, porque irão atribuir parcelas do seu tempo à complexa arte de governar? Platão responde que os Guardiões (possuindo a sophia) não governarão apenas porque foram preparados para tal, ou porque a função possui vantagens intrínsecas ao seu exercício, mas porque se não o fizerem, a cidade não irá ser bem governada e poderá sucumbir ao declínio económico, guerra civil, entre outros problemas. Os Guardiões não verão a governação enquanto algo aprazível, mas enquanto algo necessário.

Certamente que, ainda assim, o Rei-Filósofo poderia ser, no fundo, um homem sem escrúpulos e aproveitar as potencialidades da sua posição para alterar as leis fundamentais (incluindo as que interditam a posse de propriedade). E quem o poderia impedir? Talvez possamos afirmar que os Auxiliares e o povo se unissem contra o reino tirânico. Ou talvez não, e os mesmos poderiam aproveitar para tirar partido do novo paradigma político, reforçado a autoridade tirânica do Rei-Filósofo. Podemos também supôr que o povo nunca aceitará o governo do Rei-Filósofo. Mas será que o povo poderá governar melhor, não sendo especializado e competente na arte de governar? Afinal, é este o argumento que está na base da analogia das profissões e que sustenta os argumentos de Platão. São possibilidades inquietantes, que apesar de tudo, não constituiem argumentos dignos para que possamos alinhar contra o filósofo.

A questão que poderá causar algum incómodo a Platão é de natureza epistemológica. Todo o conhecimento, seja ele de que natureza for, é falível. Não existem médicos ou arquitectos que não se enganem (com consequências graves!), e seguinto esta linha de raciocínio, poderiam os Guardiões adquirir conhecimento que sustentasse a sua posição enquanto elementos necessários? Platão afirma que os Guardiões possuem a virtude do conhecimento (sophia). Mas poderá o conhecimento ideal ser adquirido?

Certamente que não. Os Guardiões são seres humanos, e todos os seres humanos estão sujeitos a errar, em algum ponto da sua existência. Certamente que um engenheiro poderá cometer um erro ao desenhar uma ponte, com consequências catastróficas. Mas não se segue que o engenheiro seja incompetente. Cometeu um erro, mas possui a competência necessária para desempenhar as suas funções melhor que um amador que não conhece os preceitos e intricâncias inerentes à construção de uma ponte. Se não confiarmos no engenheiro, admitindo a possibilidade deste se poder enganar, poderemos confiar na populaça que possui menos competência na área, e logo, estará sujeita a enganar-se mais frequentemente? Tenho a certeza que o leitor não quereria atravessar uma grande ponte cujos materiais e quantidades fossem decididos através do sufrágio aos moradores da sua rua. Nem toda a gente possui o mesmo nível de competência - ou ausência dela - em todos os ramos do saber, tal como nos recorda Jonathan Wolff [1] Um argumento desta natureza levar-nos-ia a concluir que não existem profissões (pois apesar de não existirem humanos infalíveis, nenhum humano poderá ser um engenheiro químico competente se carecer de formação adequada).

Poderíamos ainda afirmar que não existe um corpo de conhecimentos específico da governação, e que apesar de um médico necessitar de formação adequada para exercer a sua função, não se passa o mesmo com o governante. [2] Mas também esta afirmação é pouco credível: “Os governantes actuais precisam de possuir um conhecimento bastante subtil de economia, psicologia, e motivação humana. Precisam de ter (embora nem sempre tenham) grande inteligência, uma enorme capacidade de trabalho, excelente memória, uma capacidade extraordinária de lidar com o pormenor e habilidade nas relações com outras pessoas” Jonathan Wolff, Introdução à Filosofia Política.

Parte desta descrição bastante razoável de Wolff que governar pode ser interpretado, de facto, como uma profissão de contornos bastante complexos. O bom governante deverá possuir, sem sombra de dúvida, os atributos supracitados. Mais uma vez, o argumento é insuficiente para afastar Platão.

Mas existe uma objecção que poderemos manter com algum sucesso. Não se encontraria o Rei-Filósofo, na sua contemplação filosófica e nas suas tarefas de administração da polis, privado da observação da realidade política? Não se encontraria o Rei-Filósofo privado do conhecimento real do estado da cidade, estando assim longe da obtenção das credenciais que legitimam um regime político?

Fica a questão, que a terceira parte do artigo tentará resolver.

[1][2] Jonathan Wolff, Introdução à Filosofia Política

1 comentário:

Diogo disse...

«Aos Guardiões, não lhes será permitido que possuam dinheiro ou casas, ou qualquer tipo de propriedade privada. Viverão comunalmente em instalações simples e espartanas, na verdadeira acepção da palavra. A sua remuneração será a comida que consomem.»

Vão dizer isso ao Santana Lopes...