Shangri-La. Terra de suprema felicidade e permanente harmonia, perdida num vale algures nos imponentes e frígidos Himalaias. A harmonia social, cultural e religiosa emana do Lama, governante cuja mão sábia e gentil planta os frutos da estabilidade e da paz. O Lama supervisiona a vida diária dos seus súbditos, assegurando que pobres e ricos convivam harmoniosamente, longe do conflito de classes e das convulsões sociais que têm vindo a pautar a história Ocidental através dos séculos. Uma utopia instalada no Tecto do Mundo, entre os picos altos e inóspitos dos Himalaias, que ainda assim são férteis em mitos e lendas diversos enraízados numa cultura milenar, moldada pela mão hábil dos sucessivos Dalai Lama, encarnações de Chenrezig, o Bodhisattva da Compaixão. Uma existência culturalmente rica e pacífica, numa sociedade onde reina a justiça, a cooperação e o contentamento, orientada pelos mais elevados valores budistas.
Descrito acima está o cenário que a maioria das pessoas invoca quando pensa no Tibete: frio e inóspito, mas feliz. O último paraíso na Terra, violado e deturpado pela República Popular da China aquando dasua invasão em 1950, triunfo em 1951 e consolidação em 1959, evento que colocou o Dalai Lama e o seu séquito em fuga. Os vis e seculares comunistas chineses triunfaram facilmente sobre os bons monges indefesos, enquanto o mundo assistia, impassivo perante a devassa de Shangri-La.
No entanto, este cenário possui duas vertentes: Uma é um vertente mítica, e a outra é pura verdade histórica. A verdade histórica deste cenário reside no facto de as forças de ocupação chinesa terem levado a cabo, sob os mais variados pretextos, um vasto leque de atrocidades contra o povo e cultura tibetana. Por mais progressos que tenham sido obtidos com o fim do feudalismo teocrático, estes tornam-se questionáveis quando os novos senhores assumem as rédeas da opressão, usando pretextos e ferramentas diferentes.
A vertente mítica deste cenário encontra-se firmemente enraízado no paradigma ocidental, oculto pelo nevoeiro da História (ou pela falta de interesse no seu estudo) e pelas espessas nuvens da ignorância (consequência inevitável do primeiro). Shangri-La, que de acordo com os ingénuos cruzados do 'Salvem o Tibete', quais paladinos que não conhecem a sua causa, é isso mesmo. Shangri-La. Mas Shangri-La é afinal um local fictício, cujas características gerais descrevi no primeiro parágrafo. Poderá encontrar esta terra de felicidade suprema nas páginas da obra “Lost Horizon”, da autoria do norte-americano James Hilton, que imagina e passa para o papel a utopia dos himalaias. Mas é nas páginas da sua obra que a utopia começa e conhece o seu fim: longe das utopias, felicidade ou estabilidade, o Tibete é palco de violentos conflitos sociais e religiosos, onde a exploração do homem pelo homem conhece uma dimensão mais assustadora que aquela praticada durante a Idade das Trevas europeia. O Tibete dos bem-aventurados é, afinal, o Tibete dos servos e dos escravos, dos castigados, dos desesperados e dos prisioneiros do Karma. O Shangri-La é afinal, um cenário desolador, tão duro, exigente e cruel como os picos e vales esculpidos pela Terra há milhões de anos.
Prisioneiros do Karma
Karma, esse conceito budista que nos fala de vidas passadas, e da recompensa a ser colhida proporcionalmente ao nosso comportamento durante as nossas vidas. É no Tibete que a religião, afinal, Estado, impõe a forma mais horrível, inescapável e ridícula medida de controlo social: Um camponês, desafortunado trabalhador dos campos, de sol a sol, assim o é pois o seu Karma dita que esta é a justa retribuição pelos seus actos nas suas vidas passadas. Da mesma forma, um monge rico assim o é pois tal é a sua recompensa pelos seus actos nas suas vidas passadas, proporcional à sua conduta. É no Shangri-La que os indivíduos são tidos na qualidade de responsáveis por actos que não são os seus, evidenciando uma forma astuta de controlo social que rivaliza e supera o conceito do Mandato Divino da Monarquia Absoluta.
É no Tibete idílico que a justiça é administrada das formas mais cruéis. As amputações são frequentes, e a pena de morte é administrada indirectamente (o Budismo condena o homicidio, seja sob que pretexto for). É neste local em que a teocracia atinge um novo auge, que faz corar de vergonha a República Islâmica.
Que Fazer?
Os argumentos avançados por ambas as partes demonstram o ridículo da situação em que o povo tibetano se encontra. Se por um lado os pró-independência (que na sua maioria são, por ignorância, pró-teocracia) visam a restauração do Dalai Lama ao poder, obstante a ordem social representada por este, os pró-integração (ou pró-RPC) hasteiam a frágil bandeira da Democracia e do Progresso. E é nesta luta de vontades que se esquece ou se relega para uma posição de insignificância as vontades e expectativas do povo tibetano. As barbáries cometidas por ambos os lados do conflito são omitidas ou desmentidas, e cada facção tenta mostrar o seu Tibete como o exemplo perfeito, ou da vida simples e harmoniosa, despreocupada e estável, ou da sociedade antiga que se modernizou sob os auspícios de Pequim. Apenas a miséria, que grassa continuamente, parece não escolher lado: a sua presença é ubíqua na história do Tibete, seja qual for a bandeira hasteada em Lhasa.
A solução, de acordo com os valores do Direito Natural e os melhores valores do Direito Positivo, é deixar a decisão da soberania, e de quem deve governar ao povo tibetano. Só neste reside o poder e a competência para legitimar um regime, e é mediante a sua aprovação e supervisão que este deve exercer funções. O povo tibetano deve ser libertado dos Lamas e do Karma, assim como dos burocratas de Pequim.
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