Passeava pelo Quintus e dei com as "BerkShares". Ao que parece, são umas notas emitidas pelos bancos de Berkshire, para aí serem usadas. Desconheço quais os motivos que permitem que outro tipo de moeda esteja em circulação (uma explicação é bem-vinda).
O que estas notas me fizeram lembrar foi a discussão anterior, de como os impostos são um roubo aos indivíduos, e que portanto a fuga não é mais do que um acto de defesa do contribuinte.
Num gesto de boa vontade, e seguindo a mesma linha de raciocínio, proponho que se acrescente ao roubo, o monopólio que Estado tem para a criação de moeda. É que ao contrário dos outros impostos, a este não há fuga possível.
Se o mercado regula bem todos os aspectos da vida económica, também deverá ser o mercado a criar a moeda, e não o Estado. Até porque o Estado não devia ter o direito de se financiar à custa da depreciação da minha riqueza.
"Como ficou demonstrado pelos esforços vãos de todos os que se debruçaram sobre o assunto -- de S. Tomás de Aquino a Karl Marx -- tentar arranjar uma definição de «valor» que não passe pela de «mercado» é uma empresa votada ao fracasso. Vou colocar o problema de uma forma esquelética e simplificada, para facilitar a sua abordagem por partes:
1) A moeda surge para tornar possível o comércio em sociedades onde o bartering primitivo deixa de ser prático («toma lá um frango e repara-me o esquentador» já não é prático, a não ser para fugir aos impostos).
2) Existiu desde sempre, como para toda a classe de bens com uma função determinada, um mercado para a moeda.
3) Historicamente, e por motivos perfeitamente racionais, a moeda que melhor se revelou foi, naturalmente, a que reuniu características como: manutenção de valor intrínseco, durabilidade, portabilidade, possibilidade de fraccionamento, consistência etc. Por isso o ouro é mais valioso como moeda que o cobre, o cobre que o chocolate ou os cigarros, estes que a palha etc. Os próprios nomes de certas moedas modernas indicam as suas origens como unidades de peso de metais amoedados: libra, marco, dólar (o «táler» centro-europeu) etc.. De um modo geral, e apesar das viciações introduzidas na sua composição pelos senhores privilegiados que a cunhavam (através da adulteração dessa composição), o valor que cada moeda representava era o valor existente no mercado para a substância que a compunha.
4) Com o início da actividade bancária, os banqueiros (que fornecem serviços úteis, como a guarda e aplicação dos valores que lhes são confiados) começaram a emitir «notas bancárias» que qualquer um podia trocar no banco por um valor real. Essas notas valiam o seu valor nominal em metal amoedado, e a confiança que o banco inspirava quanto à sua capacidade de em cada momento honrar os levantamentos solicitados dependia da sua actuação, dentro do que a lei permitia.
5) O que é que impedia que um determinado banqueiro começasse a colocar em circulação mais notas que os valores nos seus cofres? Em princípio, nada, a não ser a quebra de confiança do público. Num mercado livre onde a emissão de moeda é privada, não há um perigo real de catástrofe colectiva com uma depressão a longo prazo porque, no mercado do dinheiro, a reputação de segurança é recompensada com a confiança do público e a suspeita de desonestidade punida de modo inverso. Tudo o que se verifica é. como sucede desde que existe actividade bancária, uma sucessão de ciclos de inflação e recessão atenuados e normais (e, é claro, falências e desastres de bancos e depositantes individuais imprudentes pelo meio).
6) Imaginemos agora que um determinado banqueiro consegue pela força reservar exclusivamente para si o privilégio de fazer «notas bancárias» com circulação legal. Pode argumentar que o faz para bem da sociedade e «para evitar as leis cegas do mercado», pemitindo a actividade bancária comercial dos outros, mas reservando para si o direito de imprimir «notas de valor» com circulação permitida. É evidente que a partir daqui nada poderá evitar uma política inflacionária sistemática, a não ser o interesse do tal «banqueiro armado» em evitar o descalabro económico total através de estratagemas sucessivos (que não podem durar para sempre).
7) Na prática é assim que as coisas funcionam hoje em dia. Claro que do mesmo modo que nenhum estado lança impostos ilimitados que provocariam a ruína imediata e a revolta, também nenhum governo emite moeda de forma totalmente descontrolada porque sabe que o resultado seria a total desvalorização da moeda e a paralização da actividade económica. Mas aquilo que não é feito de forma absoluta e súbita, vai sendo feito de foma lenta e dissimulada. E assim, apesar do progresso tecnológico e da possibilidade de produção de bens em grande abundância, os preços não cessam de subir e as moedas convencionais de se desvalorizar desde o século XIX.
8) Como é que os governos fazem para dissimular a sua actividade inflacionária sistemática? Em vez de imprimirem dinheiro novo, fazem com que a banca comercial (estatizada ou não) -- na realidade dependente dos bancos centrais de cada país (únicos que podem fabricar dinheiro), pratique uma política de «falsificação» análoga à que antes descrevi. Ou seja, o governo através do seu banco / fábrica de dinheiro estabelece-se como garante da banca comercial, determinando os níveis «aceitáveis» de reservas que cada banco deve ter e o crédito que pode conceder. Cria-se uma situação em que a banca comercial empresta dinheiro que não tem mas que é garantido pelo banco central, exactamente como se as rotativas tivessem sido postas a funcionar, mas sem necessidade de o fazer até que alguma circunstância de força maior a isso obrigue. E além disso, inventam-se outras formas de viciação. Por exemplo: nos Estados Unidos o banco central compra bens (ou valores tais como obrigações emitidas pleo próprio estado) com «cheques» que não são descontáveis no banco central (que apenas tem contas dos bancos comerciais e do governo) mas apenas despositáveis num banco comercial. Assim, não só um determinado bem é comprado com dinheiro que não existe, como este permite a um banco comercial ficar de posse de um cheque que deposita no banco central aumentando as suas reservas e obtendo autorização para expandir ainda mais o seu crédito fictício... Passamos assim de uma situação em que o estado punha as rotativas a funcionar e emitia moeda com um valor fictício, para outra em que cria dinheiro fantasma sem mesmo o imprimir.
9) Para disfarçar este mecanismo inflacionário sistemático, e para dominar alguns dos seus sintomas mais óbvios, confundem-se muitas vezes os sintomas com a causa em si. E assistimos assim ao espectáculo periódico -- à medida que os efeitos se vão somando -- dos governantes (e seus economistas de serviço) a denunciarem os hábitos de «consumo exagerado» por parte do público, as subidas de preço praticadas pelos produtores «sedentos de lucro» etc., como se existissem misteriosos «padrões ideais» determinados fora do funcionamento do mercado. Mas na realidade, embora conjunturas específicas possam acelerar ou retardar a inflação sistemática, a sua causa primeira e profunda é só uma: o controlo do estado sobre a emissão da moeda.
E chegado a este ponto, passo a formular a minha crítica ao seu ponto de vista: a «quantidade ideal» de moeda em circulação já não é coisa relevante porque outros mecanimos existem que não requerem valor, metal ou sequer papel. Uma vez retirado o controlo que o proprio ciclo económico exercia sobre a emissão livre de notas bancárias, a única coisa que o crédito baseado no vento requer é justamente o «fiat» dos políticos. É o que já existe, com ou sem fixação -- «ideal» ou outra qualquer -- da «moeda visível» em circulação!..
Recordo-lhe aqui as seguintes palavras de Alexandre Herculano em 1877, em carta a Oliveira Martins:
«A questão única de doutrina que me parece haver em toda essa embrulhada, é a da emissão de notas: se há-de ser livre, se restrita, se monopolizada. Liberdadeiro empedernido no pecado, adopto a primeira solução em toda a sua amplitude. [...] O socialista vê no indivíduo a coisa da sociedade; o liberal vê na sociedade a coisa do indivíduo [...] A bank-note é uma coisa boa: activa a circulação dos valores, representa o representante mercadoria; é uma roda adicional na engrenagem económica, que lhe aumenta a força e a rapidez dos resultados. Deixem-na funcionar naturalmente e à vontade. [...] Quem corrije o erro, a exageração, a falsidade da avaliação total? A confiança ou desconfiança pública. E basta. [...] Não prendam a bank-note: prendam o falsário que representou um crédito que não tinha meio de realizar em dinheiro, ou pela posse de moeda efectiva, ou de valores realizáveis, ou pela eficácia do próprio crédito. [...] Do que levo dito já vê o meu amigo que eu acho tanta razão à liberdade por privilégio que tinham certos bancos do Porto de emitir notas, como aos intuitos do governo de monopolizar esse privilégio no banco nacional, que já me roubou 60 por cento nas suas notas com curso forçado e que remediou tudo passando a chamar-se em vez de banco de Lisboa, banco de Portugal.»
A queixa do Herculano, multiplicada vezes sem conta, é a história financeira do Ocidente nos últimos 150 anos, do ponto de vista do assalariado ou pequeno produtor. E o aumento de bem estar social que inegavelmente se verifica não é «devido» a este estado de coisas, mas «apesar» dele (e das catástrofes generalizadas que periodicamente provoca), graças sobretudo ao enorme progresso tecnológico e científico.
Soluções a partir da conjuntura actual de exportação da dívida, vícios e distorções acumulados no Ocidente para as economias nascentes do Oriente (enquanto isso for possível!)? Não sei! Mas parece-me relativamente fácil determinar o momento em que o mal original se instalou e em que sentido se deveria caminhar. Se fosse possível encontrar na actualidade modos de permitir que fossem os próprios mercados da moeda e do crédito a autoregular-se -- eventualmente com o estado remetido para uma posição de fiscalização e prevenção de vigarices -- talvez isso não fosse má ideia, mas infelizmente não vejo como se pode desmontar a maquinaria infernal que construímos sem uma catástrofe a curto prazo.
Tudo o que nos resta fazer é ir adiando, inspirados talvez na boutade do Keynes: «a longo prazo estaremos todos mortos». Deram-lhe ouvidos para o resto; agora os descendentes que se amanhem. E depois, no mais longo prazo ainda, esperam os optimistas, alguma coisa há-de aparecer..." Pedro Botelho
Deixo aqui o resto da discussão que surgiu no admirável mundo novo com o Diogo, exactamente a este propósito.
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